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Operação Lava Jato e as teias de uma elite estatal no sistema de justiça brasileiro

Atualizado: 14 de jul. de 2019

Herdeiros de juristas e políticos no Paraná são integrantes da força-tarefa símbolo do combate à corrupção no país


Luciano Bitencourt :: professor de Jornalismo e de Publicidade e Propaganda


Criminalizar a política que não expressa o conservadorismo estatal dominante tem sido uma estratégia eficiente para justificar ações jurídicas controversas e que, só por isso, ameaça o Estado Democrático de Direito no Brasil. As recentes revelações do jornal digital The Intercept Brasil mostram o “lawfare" oriundo de uma orquestração no âmbito da Operação Lava Jato. Os diálogos entre o então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba Sérgio Moro e procuradores da força-tarefa que se tornou símbolo do combate à corrupção mostram interesses políticos que impactaram nas eleições de 2018 e põem em xeque a lisura dos agentes públicos envolvidos.


Nas reportagens do The Intercept, Sérgio Moro, hoje ministro da Justiça e da Segurança Pública do governo Bolsonaro, atua como condutor das investigações da Lava Jato, sugerindo estratégias, indicando pistas e cobrando resultados. No sistema de justiça brasileiro um juiz deve manter “ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes”, como explicita o Art. 8º do Código de Ética da Magistratura. Portanto, um juiz não pode atuar como acusador ou interferir no processo de investigação.


Sérgio Moro tem insistido na tese de que o diálogo entre ele e os procuradores em um aplicativo de mensagens via celular, tratado pelo ministro e pelos procuradores como inverídico, é perfeitamente normal e não evidencia qualquer atitude suspeita quanto aos interesses dele no caso. Essa foi a linha de argumentação na "sabatina" de 9 horas do Senado Federal na quarta-feira, 19 de junho, e reforçada em afirmações através da mídia. Contudo, há indícios de que Moro não ofereceu isonomia no tratamento à defesa de acusados nem se baseou em procedimentos legais ao longo da operação, especialmente em relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.


A polarização ideológica em que o país está mergulhado, acentuada a partir das eleições de 2014, tem servido de pretexto para legitimar um debate superficial a respeito das decisões jurídicas consideradas arbitrárias e, algumas delas, sem provas concretas que sirvam para legitimá-las. Do lado da Operação Lava Jato, os números impressionantes de prisões e a quantidade de dinheiro público desviado por corrupção devolvida ao Estado têm servido para sustentar a validade das ações, independente da legalidade dos subsídios que embasaram as decisões. De outro lado, os diálogos vazados pelo The Intercept abriram as portas para se considerar nulas as decisões que levaram à prisão de Lula e outros condenados.


De acordo com o Código de Processo Penal, no Art. 254 inciso IV, um juiz pode ser considerado suspeito "se tiver aconselhado qualquer das partes”, motivo suficiente para que seja rejeitado tanto pela defesa quanto pela acusação. Não há como negar a participação direta do magistrado no “aconselhamento” ao coordenador da força-tarefa Deltan Dallagnol, se considerados os diálogos vazados. Mas o que Sérgio Moro considera “normal" é uma prática deturpada dentro do próprio sistema de justiça.


Em nota, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa explicita que a “quebra de imparcialidade” tem sido recorrente no Brasil. "Nos últimos anos, advogados e advogadas de defesa viram com frequência juízes abrindo mão da imparcialidade e da objetividade para fortalecer, de maneira velada, o lado da acusação. Esse movimento gerou aberrações, atropelos e arbitrariedades que, aos poucos, corroeram as garantias processuais que dão sustentação ao sistema de Justiça”.


Conversas entre juízes, promotores e advogados podem ser consideradas comuns em consultas protocolares, dentro dos autos do processo e com igualdade de tratamento para as partes. As reveladas pelo The Intercept fogem ao contexto jurídico das normas, uma vez que sugerem (para não dizer evidenciam) a articulação do juiz com os acusadores para obter vantagens políticas a grupos de interesse ligados a eles. As declarações do presidente Jair Bolsonaro, que alçou Sérgio Moro ao ministério, parecem bem claras: “Ele [Moro] é patrimônio nacional”, “o que ele fez não tem preço”.


Nos Estados Unidos, a juíza Ana Gardiner e o promotor Howard Michael Scheinberg foram punidos em um caso ocorrido em 2007, na Flórida, quando descobriu-se que ambos trocaram 949 telefonemas e 471 mensagens durante um julgamento em que os dois atuavam. A juíza e o promotor alegaram que as mensagens nada tinham a ver com o julgamento. Mesmo assim, Gardiner teve de se demitir e perdeu a licença para atividades jurídicas. Howrad Scheinberg foi suspenso por dois anos. Já houve outros casos na corte estadunidense, mas este é considerado um dos mais graves. A similaridade com o que vem ocorrendo no Brasil sugere que o sistema de justiça por aqui precisa passar por crivos mais rigorosos de avaliação.


Valdete Souto Valverde, presidenta do Conselho Executivo da Associação de Juízes para a Democracia, considera que Sérgio Moro não agiu corretamente. “Eles [Sérgio Moro e Deltan Dallagnol] conversaram sobre as acusações. Isso é proibido”. A associação também proferiu nota enfatizando que “tais práticas não refletem, em absoluto, a conduta das magistradas e dos magistrados brasileiros que cumprem o seu dever funcional. Ao defendê-las, o Ministro promove uma inaceitável banalização do exercício distorcido da atividade judicante, ofensiva à sua dignidade, seriedade e respeitabilidade, que é também incompatível com a dignidade, a honra, o decoro e a transparência exigidos pelo Código de Ética da Magistratura”.


Essa relação "promíscua" entre juiz e promotores é ilegal, mas acontece. A amizade e o convívio no mesmo local de trabalho favorecem uma aproximação que, muitas vezes, foge ao dever de urbanidade no campo jurídico, "um dever de conduta que impõe ao advogado franqueza, sinceridade, emprego de linguagem escorreita e polida, esmero e disciplina na execução dos serviços”, como definem os professores Julio Cezar Castro e Luiza Gomes da Silva. Tal cordialidade, também uma prerrogativa dos magistrados, não pode ser confundida com atitudes fora dos limites da lei e dos princípios constitucionais.


Mesmo grupo da elite estatal ocupa espaço nas instâncias de decisão do sistema de justiça.


“Dinastia jurídica”


Estudos sociológicos têm posto em evidência certos aspectos do sistema judicial que ajudam a compreender porque, no Brasil, situações como as que envolvem as denúncias do The Intercept são ofuscadas por princípios morais de grupos de parentesco com ideologias próprias. De acordo com o professor de sociologia da Universidade Federal do Paraná, Ricardo Oliveira, os integrantes da Lava Jato pertencem a grupos familiares de uma “elite estatal” e operam em rede. As conclusões fazem parte de pesquisas baseadas em biografia coletiva de grupos sociais específicos, conhecidas no campo científico como prosopografia.


O levantamento revela que os integrantes da Lava Jato, via de regra, são “herdeiros de figuras do Judiciário e da política paranaenses”. De acordo com o trabalho “Prosopografia Familiar da Operação Lava Jato e do Ministério de Temer”, procuradores e policiais federais da operação têm pais que já atuaram ou ainda atuam no sistema de justiça. Boa parte dos familiares atuaram no período da ditadura militar, o que ajuda a entender o viés ideológico e o senso de autoridade acima dos preceitos democráticos. De acordo com o levantamento, pode-se dizer que os integrantes da Lava Jato pertencem a uma “dinastia jurídica”.


Para evidenciar essa “dinastia jurídica” os pesquisadores levantaram biograficamente a trajetória de 14 procuradores do Ministério Público Federal, 8 delegados da Polícia Federal, do então juiz Sérgio Moro e do então Procurador Geral da República Rodrigo Janot. Em sua maioria, os integrantes da Lava Jato pertencem a um mesmo grupo social, frequentaram as mesmas universidades, partilham uma cosmovisão de mundo e alguns se conhecem desde criança. Além disso, a teia de relações de parentesco ou matrimonial sugere uma organização que solidifica jurisprudência própria e defesa de interesses do grupo.


Episódio que ajuda a compreender a importância dessa teia é o do procurador Deltan Dallagnol. O pai, Agenor Dallagnol, em 2002 procurador do Estado do Paraná, foi seu advogado no processo em que garantiu ao filho o direito de fazer o concurso para a procuradoria de justiça no ano em que colou grau. De acordo com as normas do concurso, só graduados há mais de dois anos tinham a prerrogativa de concorrer ao cargo. Os recursos da união foram negados em todas as instâncias por entender-se que o fato estava consumado. A União só entrou com recurso em 2004, um ano depois de Deltan Dallagnol já estar no cargo.


Decisão semelhante foi tomada pelo corregedor responsável por processo impetrado pelo PDT contra Sérgio Moro no Conselho Nacional de Justiça, ministro Humberto Martins. O partido pedia abertura de sindicância para apurar a necessidade de um processo administrativo contra Moro por conta dos diálogos considerados ilegais entre o então juiz e os procuradores da Lava Jato. Martins, no entanto, arquivou o pedido justificando que Sérgio Moro não é mais juiz, o que torna “infrutífera" a abertura de um procedimento contra ele.


O próprio ministro Humberto Martins reafirma o entendimento do CNJ de que juízes não mais atuantes estão sujeitos à sindicância. Contudo, alega que o caso de Sérgio Moro é diferente porque houve um pedido formal de exoneração. Os casos em que juízes inativos estão sujeitos a procedimentos disciplinares, segundo Martins, são os que os acusados ainda têm vínculo com a magistratura. Não é o caso de Moro. A decisão se baseia em argumentos que se assemelham ao “fato consumado” que garantiu Dallagnol no cargo de procurador. E, ao que parece, não reflete o que se espera do sistema de justiça, na medida em que desconsidera os fatos que merecem apreciação e foram objeto dos processos. Em um levantamento da Folha de São Paulo, de 55 processos contra Moro, 34 já foram arquivados.


Desvelado pelas biografias coletivas, o sistema de justiça evidencia que os mesmos grupos representam uma elite institucional presente no Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil e Conselho Nacional de Justiça. Também representam uma elite profissional que ocupa as esferas de decisão na Associação dos Magistrados Brasileiros, na própria OAB e no Conselho Nacional do Ministério Público. Além disso, esses mesmos grupos representam uma elite intelectual, de especialistas em temas da administração da Justiça Estatal. Portanto, não é difícil perceber que determinadas decisões são uma forma de manter o próprio status do sistema, no qual há pouquíssimo espaço para novos representantes no topo da pirâmide.


As semelhanças do sistema de justiça com a estrutura da indústria da mídia no Brasil são muitas. Além de reforçar o predomínio de grupos familiares no comando das decisões jurídicas, a proximidade com o sistema político é evidente. Um sistema político também dominado por uma “dinastia”, quase sempre associada ao nepotismo. Moro e os procuradores da Lava Jato têm recorrido a expedientes pouco republicanos para fugir do debate sobre a imparcialidade do grupo nos procedimentos da força-tarefa e, com isso, ganhado apoio de parte significativa do Judiciário.


Sérgio Moro está ocupando a mídia parceira no intuito de manter sua imagem de super-herói e juiz injustiçado, usado, agora como ministro de Estado, para ferir o governo de Jair Bolsonaro. Declinou de um evento em que seria sabatinado por jornalistas da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, mas esteve no Programa do Ratinho, o mesmo que recebeu do governo R$ 268 mil em publicidade para defender a reforma da previdência em tramitação no Congresso Nacional. Programas do SBT, Band, Record e RedeTV! também estão no pacote, segundo o departamento de propaganda, com investimento de R$ 37 milhões em merchandising para a reforma.


No momento em que deveria haver um amplo debate sobre o sistema de justiça, ainda sujeito a formas arbitrárias de condução e que vem enchendo o sistema carcerário de pessoas a espera de julgamento, a grande mídia permanece debruçada sobre questões superficiais, de cunho ideológico e sustentadas por informações meramente retóricas, extraídas de declarações, sem fundo investigativo. As elites do sistema de justiça estão ligadas às elites do sistema político e estão presentes no mesmo círculo das elites do sistema midiático. Como afirmam os pesquisadores, são elites que fazem parte do 1% mais rico da população brasileira e também constituem parte significativa do poder econômico, hoje determinante para a construção das noções de realidade social.

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